Texto sobre a mentira: O mentiroso, de Fabrício Carpinejar







Já convivi com uma mentirosa. Lembro que foi a pior experiência de todos os meus romances, a mais ingrata e a mais assustadora. Porque só sei do meu amor, não sei o amor que recebi. Não há nem despedida, a mulher se desintegra.

O falso e o verdadeiro se misturam e não mais definimos o que aconteceu.

A mentira corrompe, inclusive, o que foi honesto. Não sobra lembrança intacta.

Prepotência e megalomania disfarçam recalques e insegurança.



Mas não sinta pena do mentiroso. Ele não tem emoção. Ele trai um pouco por dia até não sentir mais nada. A mentira desenvolve a dissimulação, a frieza e o oportunismo.

São cyborgs da paixão,robocops da ternura.

Quem mente durante muito tempo anula a censura, não sofre com culpa e remorso, como acontece com as pessoas saudáveis.

A mentira é natural quando logo desfeita. Mas a que perdura esconde outras mentiras. Uma mentira nunca está sozinha. Aquele que mente na relação mente para a família mente para o trabalho mente para os amigos. Será uma mentira generalizada, sob o risco de surgir versões conflituosas.

E não acredite no arrependimento sem tratamento. A mentira é um distúrbio psicológico sério. O mentiroso também mentirá o perdão e a conversão súbita.

Não há como permanecer junto. É um duplo desgaste: conversar é conferir e desconfiar.

No relacionamento, a verdade é a base da convivência. Para ouvir e dar conselhos, para cuidar e ser cuidado, para acolher e ser acolhido.

Sem lealdade, não há casamento que fique de pé, não há amizade que fique sentada, não há sedução que fique deitada.

Casar com um mentiroso é viver duas vidas. Uma vida em que você acredita enquanto está junto. E uma vida totalmente desmentida pelos outros no momento em que você se separa.

O mentiroso tem regras. Apresento algumas delas, rezando para que não encontre nenhum desses replicantes em seu cotidiano:

- O mentiroso narra sua vida em ordem cronológica, para se convencer e não se perder no caminho. Guarda datas e horários de acontecimentos. Transmite a ideia de que sabe o passado de cor e possui o dom da memória.

- O mentiroso mente olhando nos olhos. Mas repare: sua boca é dura para falar. Não contrai os lábios ou ri daquilo que viveu.

- O mentiroso, quando pego em flagrante, dá um desconto em sua mentira. Ou seja, não desmente tudo, desmente parte. Para soar fidedigno o arrependimento.

- O mentiroso apenas conta a verdade em parcelas, de acordo com evidências fortes.

- O mentiroso é temperamental no momento das brigas, não sustenta a discussão. Ofende, desliga na cara, xinga, sai correndo, bate a porta. A passionalidade é uma proteção.

- O mentiroso tentará lhe convencer que você que é um mentiroso. Para se igualar. Desde o início da história de vocês.

- O mentiroso joga a culpa em sua companhia. Qualquer dúvida é loucura de sua parte, ciúme, obsessão, com objetivo de interromper a investigação. Terminará o relacionamento várias vezes quando se aproximar das incoerências.

- O mentiroso odeia ser interrompido, não é um bate-papo normal, esconde-se na educação. Primeiro fala e depois escuta. Todo mentiroso é educado demais.

- O mentiroso odeia excesso de perguntas, fica nervoso. Parece que deseja preservar sua privacidade, mas apenas não tem como se expor.

- O mentiroso tem surtos de euforia, não apresenta uma alegria constante, um humor estável. Ele está mais entusiasmado quando acabou de mentir.

- O mentiroso teme todos que mencionam seu nome. Cria intrigas para dispersar o círculo de confiança de sua companhia.

- O mentiroso descreverá histórias tristes de sua infância, destacará alguém próximo que mentiu e o quanto sofreu com as distorções.

- O mentiroso não tem amigos de vida inteira. São amigos episódicos, de fases, do trabalho e de festas, que somem e desaparecem.

- O mentiroso jamais emprega a autocrítica. Suas piadas se referem aos demais.

- O mentiroso dificilmente permanece por mais de um ano num emprego.

- O mentiroso esquece suas atitudes e condena as consequências. Como se as reações negativas fossem desvinculadas de um mal anterior, criado exatamente por ele.

- O mentiroso é moralista, defende a lealdade e a integridade, e costuma dizer que nunca mente. Ele ataca para não ser descoberto. É capaz de fazer um escândalo diante de uma mentira, como se fosse a maior aberração.

- O mentiroso não gosta que você crie laços próprios e independentes com a família dele e com seus conhecidos: "é minha mãe, é meu pai, é meu amigo, não se meta". Assim pode manipular à vontade.


Fabrício Carpinejar
Fonte: O Globo

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